Pequenas considerações sobre psicossomática, criatividade e arte em Jung.
Jung aborda a questão corpo-psique em sua obra (principalmente em Natureza da Psique vol.VIII/2). Traz a concepção de um enredamento através da compreensão de que os processos vitais – os fisiológicos e os psíquicos - fazem parte de uma mesma configuração em suas complexidades operacionais. Isto é, corpo e psique são dois lados de uma mesma moeda.
Isto suposto, na teoria junguiana, não faz sentido se falar em doenças que tenham origem ou expressão psicossomática e outras não. Na linha abordada todas as doenças são psicossomáticas. Pode-se pensar em uma totalidade corpo-psique.
Além da importância de se entender esse corpo-psique como um todo é preciso sublinhar que as doenças são expressões de sofrimentos da ordem do afeto, do inconsciente e procuram manifestar a necessidade de algo ser mobilizado e modificado na dinâmica do sujeito enquanto ser dotado de uma existência particular, porém montada também a partir de uma ancestralidade que é participante. Por isso, confrontar a sombra é mais do que olhar apenas para nossas experiências vivenciais. Esse é o caminho para o processo de individuação, onde ocorre a integração do ego - da consciência - com o material do inconsciente.
Waldemar Magaldi Filho – analista junguiano fundador do IJEP (ver site do instituto) – em seu artigo “Psicossomática: transformando sintomas em expressões simbólicas que secretam segredos do amor ferido” é atento à questão da criança adoecida: “Quando uma criança nasce sindrômica, doente ou adoece até os dois anos de idade, ela está expressando a doença familiar.
Porque os filhos são os fiéis depositários e portadores da sombra familiar (...) [que é] transgeracional (...)”.
Refletindo sobre essa apreensão, em minha experiência clínica durante cerca de vinte e cinco anos com crianças de espectros autistas variados, foi impossível não fazer a leitura das mesmas como receptáculos do enredo familiar e possivelmente ancestral. Contudo, foi fascinante ter participado, como analista, da saída de um menino de seis anos de um quadro de autismo agravado. Isso somente foi possibilitado – segundo minha compreensão – porque sua irmã de nove anos conseguiu transgredir os impedimentos psicoemocionais da família juntando-se ao esforço terapêutico. Ela se tornou o elo saudável dentro de casa, não permitindo que fossem burladas as orientações em relação ao irmão e tomando atitudes afirmativas que partiram de suas apreensões. Afirmo categoricamente que sem sua luz na sombra familiar jamais seria realizado o narrado. Seu desejo de ter um irmão para brincar – confessado a mim – abriu um caminho para o início de uma estruturação egoica marcante. Além disso, o lúdico – criação e arte - esteve muito presente nas sessões para além das palavras faltantes, o que as permitiu passarem a existir posteriormente.
Deve-se sempre entender que as afecções corporais e seus sintomas são remetidos a emoções, que levarão a um entendimento do simbólico do órgão em questão, do sistema envolvido etc.
Como trabalhar, analiticamente, todo esse material que se apresenta muitas vezes apenas como corpóreo – desvencilhado da psique, como se duas instâncias existissem em separado?
“A arte imita a natureza” é um lema alquímico. E por ela somos representados de várias formas integrados ao universo que nos rodeia. O vaso alquímico é onde ocorrem todas as operações necessárias às transformações da alma (psique). É uma metáfora perfeita para o espaço analítico. E nele a palavra nem sempre é suficiente para ressignificar. Aí entra a criatividade e a arte.
A humanidade sempre usou a arte como forma de expressão de seus conteúdos inconscientes. A arte transcende o indivíduo, inclusive. O autor estará realizando uma história que poderá ir muito além de si mesmo e, dessa forma, abarcando o ancestral e o arquetípico. Por isso a arte alheia nos afeta e nos encanta. Também nos representa.
Voltando ao espaço terapêutico, a criação e a criatividade estarão presentes através de variadas técnicas e materiais que permitem o desenvolvimento e o aflorar do inconsciente. Assim constituímos uma das bases terapêuticas para lidar com a complexidade desse psicossoma desejante de cumprir sua trajetória rumo à individuação.